A justiça e os pobres são um importante tema das Escrituras. É um tema que perpassa a história da salvação, desde que Abel foi assassinado por Caim, seu irmão, até o momento em que as lágrimas são enxugadas, no livro do Apocalipse.
Uma questão de coração e vontade
A idéia bíblica de justiça não é uma formulação teórica que simplesmente exercita o intelecto. Pelo contrário, exercita o coração e a vontade. Ela é resumida nas palavras de Jesus, que disse que amar Deus de todo o coração, de toda a alma e de toda a mente; e amar nosso próximo como a nós mesmos resume toda a Lei e os profetas (Mt 22.37-40). Estas duas afirmações concretizavam a expressão da justiça de Deus no AT.
Deste ponto de vista, a justiça tem uma característica relacional dinâmica; na verdade, é a característica de uma ação amorosa entre Deus e os seres humanos, e dos seres humanos entre si. Uma ação que está à altura das necessidades de um relacionamento, seja com Deus ou com outras pessoas, é considerada justa. Justo é qualquer ato dentro do relacionamento de aliança que mantém, preserva ou restaura a base de uma vida em comum.
Vivendo em comunidade
A justiça une humanidade e comunidade, dois elementos importantes muito desgastados em nossos dias. Por exemplo, os líderes e as potências mundiais ficam felizes em fazer do mundo uma aldeia global na economia, ma será que estão dispostos a fazer dele uma comunidade em que, de forma compassiva, uns cuidam dos outros e em que existe um compartilhamento justo dos recursos?
No AT, a lei de Moisés, exemplificada nos Dez Mandamentos, e todas as outras leis foram forjadas no contexto de um pacto de obediência e fidelidade - entre Deus e o seu povo, e entre os indivíduos. Tudo estava aberto e nada era forçado. Todas as leis pretendiam criar uma base sadia para a vida comunitária.
A preferência de Deus pelos pobres
Assim, a justiça bíblica não tem uma venda nos olhos, segurando de forma imparcial a balança, como o símbolo da justiça que temos hoje. Pelo contrário, ela tem um rosto descoberto, magnífico e santo; o rosto de Deus voltado bondosamente para os pobres, os desamparados e oprimidos. Num mundo caído em que impera uma injustiça crônica, tanto no passado como agora, Deus se coloca firmemente como Protetor e Vingador dos necessitados (Sl 10.14-18). Esta é a preferência social de Deus, sua parcialidade.
Não é que os pobres são necessariamente santificados pela carência que experimentam em sua vida, ou que são mais virtuosos do que os ricos por causa do seu sofrimento. Paulo diz no NT: "pois todos pecaram e carecem da glória de Deus" (Rm 3.23).
É que na escala social de Deus, em meio a todo o mal e à distorção causada pela condição pecaminosa do ser humano, aqueles que ficam na parte inferior da escala estão na situação de "prejudicados"; são aqueles "contra os quais se peca". E por ser o critério último do que é a justiça, Deus abraça a causa deles. Pois ele ama a justiça e o direito (Sl 33.5); ele fica perto dos que estão desanimados e salva os que perderam a esperança (Sl 34.18).
Reis e juízes
Como Senhor da justiça (Jr 23.6), Deus espera, acima de tudo, que reis e juízes (isto é, líderes da nação) sejam justos e corretos (2Sm 8.15; 1Cr 18.14; 1Rs 10.9; Dt 1.16; Êx 23.7-8; Sl 82.3-4).
O dever do rei é, não se deixar corromper, mas vigiar constantemente para falar em favor daqueles que não podem articular seu sofrimento. Ele deve julgar com justiça e defender os direitos dos pobres e necessitados (Pv 31.4-5, 8-9).
Por outro lado, os juízes não devem aceitar suborno, nem serem intimidados pelos poderosos, mas, sim, preservar o direito dos aflitos e destituídos, e socorrer os fracos e necessitados.
O papel dos profetas
Lembrar isto aos líderes era o papel dos profetas, que clamaram contra a idolatria e a injustiça_nos níveis pessoal, nacional e internacional. Em mundos momentos, eles dramatizaram em sua pessoa as consequências que adviriam do fato de o povo só ter olhos e ouvidos para seus próprios caprichos e desejos.
Na economia das Escrituras, a fidelidade ao Deus único e o bem estar do povo andam de mãos dadas (assim como a idolatria vem acompanhada pela injustiça). Devemos refletir sobre isto na realidade atual de secularismo, pluralismo e grandes avanços científicos, onde a injustiça claramente aumenta, e fica cada vez mais sofisticada. Seria isto o resultado da negação da existência de um Deus absoluto de justiça em nosso meio?
Nosso próprio mundo
Hoje, os pobres do mundo aumentaram grandemente em número e apresentam várias faces.
Devido a modificações de ordem geopolítica, as guerras étnicas de nossos dias, que eliminam populações inteiras, são uma repetição sombria do episódio em que Caim matou Abel. Atos de terrorismo internacional matam pessoas inocentes. E o poderio bélico é aplicado em escala tal que, para muitos, suscita questões relacionadas com a justiça. Dessas guerras resultam milhares de refugiados que ninguém quer receber. Em constante movimento e sem pátria própria, estão em piores condições que os exilados da antiguidade.
Mulheres e crianças em todo o mundo trazem as marcas da opressão a que são submetidas por razões de gênero e porque se mostram indefesas.
Os velhos, doentes e enfermos são deixados para trás.
Os milhares de trabalhadores dos países pobres percorrem a face da terra. Deslocados cultural e socialmente, geralmente trabalham em condições impróprias.
A fome em muitas partes do mundo deixa milhões, se não mortos, como meros espectros do que eram. E ao mesmo tempo há nações que lutam contra a obesidade entre seus cidadãos, gastando milhões com tecnologias de redução de peso.
Hoje também, uma grande parte da humanidade sofre opressão não só nas mãos de vizinhos, mas nas mãos invisíveis de elites poderosas em seus próprios países e no mundo inteiro.
Ao criarem leis, estruturas e sistemas que favorecem os interesses de poucos, as pessoas de nossos dias inventaram uma maneira de se distanciar dos atos diretamente opressivos, não só contra indivíduos e comunidades, mas também contra nações e povos inteiros.
Algumas das leis, estruturas e sistemas político-econômicos que operam atualmente mantêm nações mais fracas em constantes dependência e subdesenvolvimento. Que os pobres sempre estarão conosco é algo que ainda se pode verificar - prova de uma consciência universal não regenerada sob o juízo de Deus.
Quem pode ajudar?
O profeta Isaías examinou a realidade moral e social da sua época e constatou que o quadro não era nada animador. Ele lamentou:
"O SENHOR viu isso e desaprovou o não haver justiça. Viu que não havia ajudador algum e maravilhou-se de que não houvesse um intercessor". |
Interceder foi o grande desafio para Isaías e todos os profetas fiéis antes e depois dele.
Hoje, com injustiça estruturada e globalizada, e com os pobres ainda mais marginalizados e reduzidos a simples estatísticas, o desafio de ser um intercessor continua mais urgente do que nunca.