O livro sagrado dos muçulmanos, o Corão, alega repetidamente ser a continuação da revelação dada na tradição judaico-cristã e é considerado pelos muçulmanos a última de uma linhagem de escrituras dadas aos profetas:
"Cremos em Alá e aquilo que de cima foi enviado sobre nós, sobre Abraão, Ismael, Isaque, Jacó e as tribos de Israel e o que foi outorgado a Moisés e a Jesus e o que foi dado a todos os profetas vindo do seu Senhor. Não fazemos distinção entre todos eles, porque foi a Alá que nos submetemos" (Sura 2.136).
As outras escrituras são mencionadas com frequência, especialmente o Tawrat (ou Torá), o Zabur (Salmos) e o Injil (Evangelho). Judeus e cristãos são exortados, além disso, a viver segundo a vontade de Deus como foi revelado nos seus livros:
"Que o povo do Evangelho julgue de acordo com aquilo que Alá revelou nele e quem não julga pelo que Alá revelou é rebelde" (QS.50).
Alguns versículos antes, os judeus também são desafiados a viver segundo a luz e orientação da Torá.
No que o Corão e a Bíblia diferem
No entanto, já na época em que o Profeta do Islã era vivo começava a ficar claro que as Escrituras dos judeus e cristãos eram bem diferentes da revelação que o Profeta alegava ter recebido. Como explicar isto, se todos eram a Palavra de Deus?
Esta dificuldade é contornada de maneiras diferentes, mas principalmente pela alegação de que o Corão "cumpre" as outras revelações mais parciais: que, em certos casos, "lembra" seus leitores do que foi esquecido e que "abranda" ou ab-roga certas partes das escrituras mais antigas:
"As revelações que ab-rogamos ou fazemos cair no esquecimento, nós as substituímos por outras, iguais ou melhores" (2.106).
Este versículo foi muitas vezes usado não só para avaliar as outras escrituras em relação ao Corão mas também para determinar como certas passagens fundamentais no Corão se relacionam com outras partes do livro.
No que diz respeito à lei mosaica, a posição do Corão é que pelo menos algumas de suas cláusulas foram decretadas como castigo por rebelião. Jesus supostamente revogou algumas delas e o Profeta do Islã abrandou outras (3.50; 4.160; 5.90). Assim o Corão, na visão muçulmana, é a revelação final e definitiva que "cumpre" as outras escrituras e, naquilo que estas contradizem o Corão, são ab-rogadas.
Um texto corrompido?
Outra maneira pela qual o islamismo procura fazer frente às discrepâncias entre suas escrituras e as dos judeus e cristãos é a acusação do Tahrif. É a crença que o "Povo do Livro" que viveu em período anterior mudou ou corrompeu seus livros de tal forma que estes não mais concordam com o Corão. O "Povo do Livro" é acusado de alterar as escrituras para seus próprios propósitos (2.75-79; 4.46; 5.14). Pode ser, todavia, que os cristãos não sejam acusados, pelo menos no Corão, de alterar as escrituras, mas apenas "esquecer" o que receberam (cf. 5.15).
Os primeiros comentaristas muçulmanos, tais como Tabari e Razi, eram da opinião que a alteração era tahrif bi'l ma'ni, uma corrupção do significado do texto sem necessariamente envolver corrupção do texto em si.
Gradativamente, porém, surgiu um consenso de que o "Povo do Livro" era culpado de tahrif bi'l lafz, a corrupção do próprio texto. O teólogo espanhol Ibn Hazm e o mestre itinerante na Índia, o cientista Al-Biruni, foram os principais propagadores desta teoria. Muitos estudiosos, no entanto, continuam a defender que o Corão não afirma corrupção geral das escrituras judaico-cristãs, mas apenas que os textos foram mal usados e certas passagens, ocultadas.
Uso da Bíblia
Embora os muçulmanos acreditem que o conteúdo do seu livro sagrado tenha sido recebido diretamente de Deus e, portanto, não depende de qualquer outro documento literário ou histórico, muitos estudiosos muçulmanos referem-se à Bíblia quando tentam comentar o significado do Corão.
Estes estudiosos não são apenas os que integram uma escola mais "liberal" de pensamento. Os conservadores também usam a Bíblia extensivamente como contexto histórico para o estudo do seu próprio livro. Ao fazerem isto, precisam definir até que ponto houve alteração do texto, independentemente das interpretações a que foi submetido por judeus e cristãos.
Muitos chegam a conclusões surpreendentes: concordam, por exemplo, que narrativa e comentário na Bíblia podem sofrer alteração, mas que isto não se aplica às palavras inspiradas dos próprios profetas. Isto, é claro, deixa intacta a integridade de extensos trechos da Bíblia!
Como os muçulmanos entendem a revelação
Para que cristãos entendam a visão muçulmana da Bíblia, é crucial que tenham alguma noção de como os muçulmanos vêem a revelação. A ideia de uma obra pré-determinada descendo do céu, para a qual o profeta apenas serve de meio ou instrumento, não condiz com o conceito de revelação para a maioria dos cristãos.
Em diálogo com muçulmanos, é muito importante explicar como os cristãos entendem que a revelação é mediada, não só por meio das limitações de cultura e língua, mas também por meio de um processo de acréscimo nas tradições, de reflexão e edição por parte de comunidades e indivíduos.
A maneira em que a evidência manuscrita é tratada nas duas tradições é um exemplo disto. Todas as edições atuais do Corão são derivadas de uma única recensão (sendo que as variantes foram destruídas no decorrer da história). Para os muçulmanos, isto é um sinal da integridade e confiabilidade do livro.
No que tange às escrituras judaico-cristãs, por outro lado, há um grande número de manuscritos, às vezes em línguas diferentes, que são usados para elaborar a edição crítica de um texto. A confiabilidade é atingida não pela dependência de uma única linha de evidência manuscrita, mas pela comparação de tradições manuscritas diferentes.
Estas são as formas diferentes de chegar àquilo que a comunidade considera um texto confiável.
Livros fora do "cânon" oficial
Ocasionalmente os muçulmanos produzem livros semelhantes ao assim chamado Evangelho de Barnabé que, segundo eles, é o Evangelho autêntico. No entanto, nem o próprio Corão, nem a tradição muçulmana mais antiga, faz qualquer referência a tais obras. "Barnabé" é, na realidade, uma obra relativamente moderna, escrita na Espanha muçulmana, que discorda do Corão em certos aspectos importantes!
Tentativas de produzir tais obras demonstram, no entanto, quão grande é a dificuldade que os muçulmanos têm com a noção cristã de como livros diferentes da Bíblia foram escritos e como a lista aprovada surgiu na sua forma atual.
Entendimento mútuo
O diálogo paciente sobre as escrituras de cada fé tem, na verdade, aprofundado a compreensão da posição do outro lado. Os cristãos compreendem a extensão da continuidade que existe entre o Corão e as escrituras que eles usam, enquanto os muçulmanos passam a apreciar algumas das escrituras às quais o Corão se refere.
Isto é muito bem-vindo, pois só pode levar a uma melhor compreensão do que se tem em comum e ao estabelecimento de uma base a partir da qual se pode lidar com as sérias diferenças que permanecem.
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Filipenses 1:9-11